Complicações bucais da radioterapia em cabeça e pescoço

Fonte:  JHAM, B. C.; FREIRE, A. R. S. Complicações bucais da radioterapia em cabeça e pescoço. Rev Bras Otorrinolaringol 2006;72(5):704-8.

Anualmente, são diagnosticados no mundo cerca de 870 mil novos casos de tumores malignos das vias aerodigestivas superiores. As taxas de incidência destas neoplasias em países não-desenvolvidos são superadas somente pelas taxas do câncer do colo uterino. O tratamento de escolha para essas neoplasias é a cirurgia, associada ou não à radioterapia. Cirurgia e radioterapia são formas de tratamento para a doença localizada ou regional.

Muitos dos pacientes que apresentam câncer de cabeça e pescoço são submetidos a altas doses de radioterapia em extensos campos de radiação que irão incluir a cavidade bucal, maxila, mandíbula e glândulas salivares. A radioterapia, apesar de apresentar a vantagem de preservar a estrutura dos tecidos, acarreta em inúmeras reações adversas que se manifestam na cavidade bucal. Tendo em vista que as complicações bucais decorrentes da radioterapia resultam em alta morbidade e queda da qualidade de vida, o objetivo desta revisão é abordar os principais efeitos adversos bucais decorrentes da radioterapia.

Aspectos biológicos da radioterapia

Radioterapia é uma modalidade de tratamento para tumores malignos cujo agente terapêutico é a radiação ionizante, ou seja, aquela que promove ionização no meio onde incide, tornando-o eletricamente instável. As radiações ionizantes são divididas em corpusculares e eletromagnéticas. As radiações corpusculares são representadas pelos elétrons, prótons e nêutrons; as radiações eletromagnéticas são chamadas de fótons, sendo representadas pelos raios X e pelos raios gama. Na prática clínica, a maior parte dos tratamentos radioterápicos é feita através do uso de fótons.

As radiações ionizantes agem sobre o DNA nuclear levando à morte ou à perda da sua capacidade reprodutiva. Como o conteúdo de DNA duplica durante a mitose, células com alto grau de atividade mitótica são mais radiossensíveis do que aquelas com baixa taxa de mitose. A ação da radiação pode ser direta ou indireta. Na ação direta, a molécula de DNA é clivada, o que interfere no processo de duplicação. No efeito indireto, a água é dissociada em seus dois elementos, H+ e OH-, sendo que este último reage com as bases de DNA, interferindo no processo de duplicação. Como a água representa a maior parte do conteúdo celular, o efeito indireto é proporcionalmente mais importante que o direto.

Por estarem em contínuo processo de multiplicação, as células neoplásicas são passíveis de sofrerem os efeitos da radiação. Entretanto, a capacidade de multiplicação varia de acordo com o tipo celular. Desta forma, existe uma escala de radiossensibilidade tanto para células tumorais como para células normais. Neoplasias embrionárias e linfomas são tumores radiossensíveis, enquanto que carcinomas são moderadamente radiossensíveis.

Para expressar a quantidade de radiação absorvida pelos tecidos, foi proposta inicialmente uma unidade internacional, o rad (radiation absorbed dose), isto é, a diferença entre a radiação aplicada e a que atravessou os tecidos. Recentemente, esta unidade foi substituída pelo Gray, definido como 1 joule por quilograma. O Gray é abreviado como Gy, sendo que: 1 Gy = 100 cGy =100 rad.

A radioterapia pode ser realizada em esquemas de curta duração até esquemas extremamente protraídos, durante várias semanas. A justificativa das aplicações em pequenas frações diárias tem sua fundamentação nos “5 Rs” da radiobiologia: reoxigenação, redistribuição, recrutamento, repopulação e regeneração.6 A maioria dos pacientes submetidos à radioterapia recebe uma dose total de 50-70 Gy como dose curativa. Essas doses são fracionadas em um período de 5-7 semanas, uma vez ao dia, 5 dias por semana, com dose diária de aproximadamente 2 Gy. Nos tratamentos adjuvantes, 45 Gy são empregados no pré-operatório e 55-60 Gy no pós-operatório.

Complicações bucais da radioterapia

Reações adversas à radioterapia irão depender do volume e do local irradiados, da dose total, do fracionamento, da idade e condições clínicas do paciente e dos tratamentos associados. Uma pequena elevação na dose tumoral é suficiente para aumento expressivo na incidência de complicações. Reações agudas ocorrem durante o curso do tratamento e em geral são reversíveis. Complicações tardias são comumente irreversíveis, resultando em incapacidade permanente e em piora da qualidade de vida , e variam em intensidade, sendo, em geral, classificadas em leves, moderadas e graves.

Muitos dos pacientes que apresentam câncer de cabeça e pescoço são submetidos a altas doses de radioterapia em extensos campos de radiação que irão incluir a cavidade bucal, maxila, mandíbula e glândulas salivares. Desta forma, a terapia anticâncer está associada a diversas reações adversas. Essas reações podem ocorrer em uma fase aguda (durante ou nas semanas imediatas ao tratamento) ou em uma fase crônica (meses ou anos após a radioterapia). A gravidade das complicações bucais agudas irá depender do grau de inclusão dessas estruturas no campo de irradiação.

A mucosite é definida como uma irritação da mucosa.5 A mucosite induzida pela terapia antineoplásica é uma importante reação adversa, podendo interferir no curso da radioterapia e alterar o controle local do tumor e, conseqüentemente, a sobrevida do paciente.

Os pacientes irradiados têm maior tendência ao desenvolvimento de infecções bucais causadas por fungos e bactérias. Estudos têm demonstrado que pacientes que foram submetidos à radioterapia apresentam maior número de espécies microbianas, tais como Lactobacillus spp., Streptococcos aureus e Candida albicans. A candidose bucal é uma infecção comum em pacientes sob tratamento de neoplasias malignas das vias aero-digestivas superiores. A colonização da mucosa bucal pode ser encontrada em até 93% desses pacientes, enquanto que infecção por Candida pode ser vista em 17-29% dos indivíduos submetidos à radioterapia. O risco aumentado para a candidose bucal decorre provavelmente da queda do fluxo salivar conseqüente da radioterapia.

A disgeusia acomete os pacientes a partir da segunda ou terceira semana de radioterapia, podendo durar vá- rias semanas ou mesmo meses. Ela ocorre já que os botões gustativos são radiossensíveis, ocorrendo degeneração da arquitetura histológica normal dos mesmos. O aumento da viscosidade do fluxo salivar e a alteração bioquímica da saliva formam uma barreira mecânica de saliva que dificulta o contato físico entre a língua e os alimentos. A recuperação a níveis quase normais normalmente ocorre de 60 a 120 dias após o término da irradiação.

Mesmo indivíduos que já há algum tempo não apresentavam atividade cariosa podem desenvolver cáries de radiação ao serem submetidos à radioterapia. O principal fator para que tais lesões de desenvolvam é a diminuição da quantidade de saliva, bem como alterações qualitativas da mesma. Além disso, a radiação exerce um efeito direto sobre os dentes, tornando-os mais susceptíveis à descalcificação

A osteorradionecrose (ORN) é a necrose isquêmica do osso decorrente da radiação, sendo uma das mais sérias conseqüências da radioterapia, resultando em dor bem como possíveis perdas substanciais da estrutura óssea.5,28 Em decorrência da terapia anti-câncer, as células ósseas e a vascularização do tecido ósseo podem sofrer lesões irreversíveis. A ORN pode ocorrer de forma espontânea ou, mais comumente, após trauma (normalmente extrações dentárias). Em 95% dos casos a ORN está associada à necrose de tecido mole e exposição óssea subsequente.

Outra possível consequência da radioterapia é a necrose de tecido mole, que pode ser definida como uma úlcera localizada no tecido irradiado, sem presença de neoplasia residual. A incidência da necrose de tecido mole está relacionada com a dose, tempo e volume da glândula irradiada, sendo que o risco é maior quando a braquiterapia é usada. A necrose de tecido mole é uma condição normalmente dolorosa e boa higiene bucal, bem como o uso de analgésicos e muitas vezes de antibióticos são necessários para a resolução da condição.

A xerostomia, ou “boca seca”, pode ser decorrente de certas doenças ou ser uma reação adversa a alguns medicamentos. Entre os pacientes irradiados na região de cabeça e pescoço, é uma dais mais frequentes queixas. Chencharick e Mossman verificaram que 80% dos pacientes irradiados queixam-se de xerostomia. Entretanto, a relação entre a percepção individual de boca seca e os reais valores dos fluxos salivares ainda não foi totalmente definida. Em algumas situações, existe correlação entre fluxo salivar reduzido e queixa de xerostomia. Porém, em muitos casos não existe associação entre a xerostomia e os achados objetivos de disfunção das glândulas salivares – ou seja, pacientes sem alterações no fluxo salivar podem se queixar de secura na boca.

Conclusões

A radioterapia tem sido amplamente utilizada no tratamento das lesões malignas da cabeça e pescoço, com melhora da sobrevida dos pacientes. Entretanto, esta forma de terapêutica ainda está associada a diversas reações adversas, que afetam de forma significativa a qualidade de vida dos pacientes, podendo afetar inclusive o andamento do tratamento. Levando em conta que as taxas de incidência do câncer de cabeça e pescoço provavelmente vão se manter as mesmas das últimas décadas, é de suma importância que profissionais da área de saúde estejam familiarizados com as complicações que podem advir do tratamento antineoplásico. O tratamento multidisciplinar, incluindo a equipe médica, o cirurgião-dentista, o fonoaudiólogo, o nutricionista e o psicólogo é a melhor alternativa para minimizar ou mesmo prevenir tais complicações.

 

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Posted on 6 de janeiro de 2017 in Enfermagem, Radioterapia

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